O "modelo carioca": a perigosa mudança na segurança pública
Lei das PMs permitirá autonomia para os militares, dificultando controle civil na polícia.
Se você recebeu a newsletter é sinal que o “gatonet” do mês está em dia e a milícia liberou a senha do wi-fi. É evidente que estou brincando. Porém, o assunto é muito sério! E a coisa toda pode descambar de vez, espalhando a ineficiência policial do Estado do Rio de Janeiro para todo o país. Em meio a uma grave, crescente e difícil situação da segurança pública no Brasil, centrada especialmente nos grandes centros urbanos, foi aprovada a lei 3045/2022, popularmente conhecida como a "lei das PMs". Existem avanços, é certo! Acontece que alguns pontos, especialmente a que permitirá que os Estados e o Distrito Federal possam implantar um estilo de policiamento semelhante ao carioca, causam preocupações.
É sobre isso que vamos abordar hoje!
Lembre-se de ajudar o Controversas a ganhar ainda mais relevância. Compartilhe com os amigos e se puder pinga um pra nós na assinatura.
Responder diretamente ao governador... será?
Por Tarciso Souza
É verdade que os bombeiros e policiais militares possuem as suas regras de atuação mantidas por uma herança da ditadura militar? Sim! A desgraça da ditadura, e o medo brasileiro em enterrar os esqueletos deixados por chulezentos de coturno, criou um fetiche em parte da sociedade que impede a implantação de uma política mais eficazes para segurança pública. Um decreto de 1969, relacionados aos Atos Institucionais do governo, é o que ainda trata do funcionamento das estruturas de policiamento no país.
Agora, emerge como uma promessa de mudança substancial no sistema a Lei 3045/2022, popularmente conhecida como a "lei das PMs". Aprovado na Câmara e no Senado, o texto segue para a sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e vai impor novas regras para essas instituições.
A legislação assegura, no Artigo 29, que as corporações estejam subordinadas diretamente aos governadores. Isso pode soar como uma estratégia eficiente, mas uma leitura apurada, nas entrelinhas, nos leva a questionar: estaria esse artigo deixando brechas para a extinção das secretarias de Segurança Pública? E mais... introduz uma peculiaridade: a criação de ouvidorias próprias, lideradas pelos comandantes das tropas, prisões especiais para os militares, não mais coordenadas por órgãos civis. Uma abordagem que, inspirada no modelo do Estado do Rio de Janeiro, tem recebido críticas consideráveis.
Com a aplicação da nova lei, e a possibilidade de impor o fim das Secretaria de Segurança Pública, devemos assistir o intensificar da competição historicamente existente entre as polícias civil e militar, um problema sério de segurança pública no Brasil. O país é um dos poucos no mundo que conta com duas estruturas concorrentes de policiamento e repressão. A inexistência de uma atuação coordenada entre essas forças estaduais é um desafio que esta lei não enfrenta.
E tem mais: a legislação estabelece requisitos para os militares que assumem funções de comando, exigindo bacharelado em Direito para os "Quadros de Oficiais de Estado Maior". Uma decisão que, enquanto eleva o padrão educacional, também pode reduzir a diversidade dentro dessas instituições.
Mas qual o risco, de fato, de espalhar o modelo carioca por todo Brasil?
É que nem sempre a sociedade encontra a transparência necessária para cobrar o aprimoramento das políticas de segurança pública e controle da repressão. Para quem não lembra, foi exatamente esta estratégia que deu origem os partidos do crime, as milícias e facções criminosas.
Ouça o podcast “O Assunto” que tratou sobre o tema.
Já destacamos no Controversas uma declaração do Ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), ressaltando que foram os políticos que incentivaram e permitiram que a bandidagem invadisse e aliciasse as polícias: “Um dos maiores erros políticos que houve no Rio de Janeiro foi o incentivo às milícias. As milícias foram incentivadas por políticos e protegidas por políticos”.
A farda e a militância política
Uma das mudanças mais marcantes apresentada na nova lei – que ainda muito tímida sobre o assunto - é a explícita proibição de filiação a partidos políticos ou sindicatos. Se antes esta restrição era exclusiva das Forças Armadas, agora se estende sobre PMs e bombeiros militares. Esta é uma declaração clara de que a farda e a bandeira partidária não devem compartilhar o mesmo espaço no guarda-roupa dos servidores de segurança. Força de Estado, paga com dinheiro do contribuinte para ter arma na cintura não pode misturar defesa política com proteção do cidadão.
O projeto desenha limites estritos sobre a presença dos militares em eventos político-partidários. Armados ou fardados, sua presença é permitida apenas se estiverem cumprindo deveres profissionais. Este é um passo que visa a separação entre o papel institucional e o envolvimento político pessoal.
A proibição de divulgar opiniões político-partidárias, especialmente utilizando os símbolos da instituição, é uma restrição que ecoa em tempos de redes sociais. Esta cláusula, como um observador implacável, supervisiona a participação dos militares no cenário virtual, resguardando a neutralidade e a imagem das instituições.
Neste campo, seria importante avançar ainda mais, afastando o militar da carreira após o ingresso na vida política, mesmo perdendo a eleição. Além disso, o servidor deveria disputar o pleito sem recebimento de vencimentos, uma vez que não estará no exercício do cargo público.
Reserva de Vagas: 20% para candidatas do sexo feminino em concursos militares
Este é, sem dúvida, um avanço da nova lei das PMs. No mínimo 20% das vagas nos concursos públicos para militares deverão ser destinadas para as candidatas do sexo feminino. Uma inclusão crucial, que poderá mudar o perfil violento de muitas corporações. É o início, evidente, de uma longa e difícil batalha para despertar a necessidade de discutir igualdade de gênero e representatividade também nas instituições militares.
O fim dos Bombeiros Voluntários?
Em um capítulo à parte, a nova lei traz à tona preocupações relacionadas aos bombeiros voluntários. Como uma tempestade perfeita, atribui exclusividade aos Bombeiros Militares para serviços de defesa civil, combate a incêndio e resgates. Um monopólio que, embora possa ter sido desenhado com boas intenções, impede a colaboração entre as diferentes esferas de bombeiros, voluntários e militares, prejudicando o atendimento à população.
Com a lei das PM’s, os bombeiros voluntários perdem sua autonomia. Assim, o funcionamento das estruturas dependera de acordos políticos em cada estado para sua continuidade e organização.
Além disso, a exclusividade do uso do nome "Bombeiros" e "Brigada Militar" pelos militares, assim como o comando de atividades desenvolvidas por bombeiros, coloca os voluntários em segundo plano, retirando a identidade que construíram ao longo dos anos.
É preciso ressaltar o papel que Santa Catarina representa para os Bombeiros Voluntários do Brasil. Foi em Joinville que nasceu, em 1892, a pioneira corporação que deu origem aos demais – não militares – existentes no país. Hoje, no Estado, são quase 5 mil voluntários distribuídos em 32 corporações prestam socorro a 1,6 milhão de pessoas por ano em 52 municípios.
Os desafios dos bombeiros voluntários vão além de lutar apenas contra o fogo e resgate de vidas. A legislação ameaça sufocar o espírito voluntário que sempre foi a chama da esperança em muitas comunidades. Existe uma carência enorme de atendimento de bombeiros em todo país. Estima-se que ao menos 80% do território brasileiro não conta com uma unidade destes profissionais. Em Santa Catarina, por exemplo, aproximadamente 60% dos municípios carecem de qualquer presença de bombeiros.
Este texto esgota o assunto?
Mas de jeito nenhum! A lei também trata de permitir que a PM avance também na área que até agora é desenvolvida por civis: a investigação criminal. E permite ainda que as polícias militares desenvolvam ações de agentes florestais.
Quem saber mais sobre a nova lei das PMs? Deixe nos comentários sua opnião.